Um assunto que deveria ser de interesse de todo
brasileiro trabalhador escravo desse governo de “Capitanias Hereditárias”.
Coloco na integra, antes que “apaguem”, a matéria
da jornalista Eliane Brum (31/10/11 – 10:47h) da Revista Época, Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do
Sarney, pelo fato de não ter mais nada a acrescentar. E, por respeito ao senador
(link como direito de resposta).
Sei que poucos gostam de ler, principalmente sobre
política e textos grandes. Classifico como doença do desinteresse causado pela falta de culto à leitura, por
novelas, por salas de bate papo e por twitters.
Parabenizo aos que se preocupam com o futuro do
país e da sociedade, e com o verdadeiro poder do conhecimento para nossas
vidas. Sugiro
leitura de Paulo Sanda sobre os problemas ambientais de Belo Monte em www.ecodebate.com.br
Nota pessoal: Pena que no dia de finados
ainda não dá para comemorar a lembrança dos que já morreram. Faltam muitos!
Belo Monte,
nosso dinheiro e o bigode do Sarney
Um dos mais respeitados especialistas na área
energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa
preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que
domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma
Rousseff no Ministério de Minas e Energia
ELIANE BRUM Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de
reportagem. É autora de um romance - Uma Duas
(LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes
– O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio
Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).
E co-diretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.
elianebrum@uol.com.br ,@brumelianebrum
E co-diretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada.
elianebrum@uol.com.br ,@brumelianebrum
Se você é aquele tipo de leitor que acha que Belo
Monte vai “afetar apenas um punhado de índios”, esta entrevista é para você.
Talvez você descubra que a mega obra vai afetar diretamente o seu bolso. Se
você é aquele tipo de leitor que acredita que os acontecimentos na Amazônia não
lhe dizem respeito, esta entrevista é para você. Para que possa entender que o
que acontece lá, repercute aqui – e vice-versa. Se você é aquele tipo de leitor
que defende a construção do maior número de usinas hidrelétricas já porque acredita
piamente que, se isso não acontecer, vai ficar sem luz em casa para assistir à
novela das oito, esta entrevista é para você. Com alguma sorte, você pode
perceber que o buraco é mais embaixo e que você tem consumido propaganda
subliminar, além de bens de consumo. Se você é aquele tipo de leitor que
compreende os impactos socioambientais de uma obra desse porte, mas gostaria de
entender melhor o que está em jogo de fato e quais são as alternativas, esta
entrevista também é para você.
Como tenho escrito com frequência sobre a mega usina hidrelétrica de Belo Monte, por considerar que é uma das questões mais relevantes do país no momento, observo com atenção as manifestações dos leitores que comentam neste espaço ou em redes sociais como o twitter. Anotei as principais dúvidas para incluí-las aqui e assim colaborar com o debate.
Desta vez, propus uma conversa sobre Belo Monte a
Célio Bermann, um dos mais respeitados especialistas do país na área
energética. Bermann é professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da
Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em Planejamento de Sistemas
Energéticos pela Unicamp. Publicou vários livros, entre eles: “Energia no
Brasil: Para quê? Para quem? – Crise e Alternativas para um País Sustentável”
(Livraria da Física) e “As Novas Energias no Brasil: Dilemas da Inclusão Social
e Programas de Governo” (Fase). Ex-petista, ele participou dos debates da área
energética e ambiental para a elaboração do programa de Lula na campanha de
2002 e foi assessor de Dilma Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas
e Energia. Célio Bermann foi também um dos 40 cientistas a se debruçar sobre
Belo Monte para construir um painel que, infelizmente, foi ignorado pelo
governo federal.
Vale a pena ouvir o professor a qualquer tempo.
Mas, especialmente, depois de uma semana dramática como a passada. Na
quarta-feira (26/10), o julgamento da ação movida pelo Ministério Público
Federal reivindicando que os índios sejam ouvidos sobre a obra, como determina
a Constituição, foi interrompida e adiada mais uma vez no Tribunal Regional
Federal da 1ª Região, em Brasília. Na mesma quarta-feira, chamado pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA)
para explicar por que não suspendeu as obras de Belo Monte, o Brasil não
compareceu, desrespeitando o organismo internacional e exibindo um
comportamento mais usual em ditaduras. Em reportagem publicada em 20/10, o Estadão
denunciou que, como retaliação por ter sido advertido sobre Belo Monte, o
Brasil deixou de pagar sua cota anual como estado-membro.
Na quinta-feira (27/10), centenas de pessoas,
entre indígenas, ribeirinhos e moradores das cidades atingidas, ocuparam
pacificamente o canteiro de obras de Belo Monte, no rio Xingu, pedindo a
paralisação da construção da usina. Foram expulsos por ordem judicial. Enquanto
o canteiro de obras era ocupado por uma população invisível para o governo de
Dilma Rousseff, o cineasta Daniel Tendler apresentava no Seminário Nacional de
Grandes Barragens, no Rio de Janeiro, o projeto de uma mega produção
cinematográfica que se propõe a documentar as obras de Belo Monte por cinco
anos. O projeto é comandado pela LC Barreto, a produtora da poderosa família
Barreto, a mesma que fez “Lula, O Filho do Brasil”. Tendler, aliás, foi um dos
roteiristas do filme sobre a vida do ex-presidente. Entre as repercussões da
mega produção cinematográfica sobre a mega obra do PAC no twitter, destacou-se
uma: “Os Barreto estão para o cinema nacional como os Sarney para a política”.
Ainda na semana passada, o governo federal publicou um pacote de sete portarias ministeriais com o objetivo de “destravar a concessão de licenças ambientais no país para acelerar grandes empreendimentos, como rodovias, portos, exploração de petróleo e gás, hidrelétricas e até linhas de transmissão de energia”. Ou seja: o governo caminha para anular as conquistas socioambientais obtidas na redemocratização do país.
Dias antes, em 26/10, o Senado havia aprovado um projeto de lei que retira o poder do IBAMA para multar crimes ambientais, como desmatamentos. Se não for vetado pela presidente, o poder de multar passará para estados e municípios, sujeito às pressões locais já bem conhecidas. A aprovação do projeto aconteceu quatro dias depois de mais um assassinato no Pará: João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, foi morto com um tiro na cabeça, depois de denunciar ao Ministério Público Federal, em Altamira, uma rota de desmatamento ilegal na reserva extrativista Riozinho do Anfrísio e na Floresta Nacional Trairão, área do entorno de Belo Monte. Como de hábito, o Congresso decide os rumos do país desconectado com o que acontece na vida real para além do aquário brasiliense.
No momento histórico em que recursos como água e
biodiversidade se consolidam como o grande capital de uma nação, o Brasil, um
dos países mais beneficiados pela natureza no planeta, corre em marcha à ré. O
cenário que você acabou de ler tem no centro – como obra simbólica e
estratégica – Belo Monte, a maior obra do PAC. A seguir, parte de minha
conversa de quase três horas com o professor Célio Bermann, em sua sala no
Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP.
- Por que o senhor, assim como outras pessoas
que estudam o setor, afirma que a área energética do país é uma “caixa preta”.
Afinal, que caixa preta é essa?
Célio Bermann – A política energética do
nosso país é uma caixa preta e é mantida dessa forma por uma série de razões.
Primeiro, porque a baixa escolaridade da população brasileira não permite, por
exemplo, que o leitor da Época entenda o que é terawatts/hora. Mas seria
interessante que a população toda tivesse conhecimento e pudesse, com
informação, começar a definir junto com empresas e governo os rumos que são
mais adequados. Acho que a academia tem um papel fundamental nesse processo.
Eu, particularmente, tento, na área do meu conhecimento, procurar as populações
tradicionais, mostrar o que é uma usina hidrelétrica, por que alaga quando você
interrompe o fluxo, o que é uma barragem, e como isso vai acabar transformando
a vida da comunidade. Acho importante que a academia preste esse tipo de
informação, já que governo e empresas não o fazem.
- Sim, mas por que o setor energético tem sido
uma caixa preta por décadas?
Bermann - A governabilidade foi
encontrada através de uma aliança que mantém o círculo de interesses que sempre
estiveram no nosso país. É a mesma turma que continua na área energética. E
isso é impressionante. A população não participa do processo de decisões. Não
existem canais para isso. Ainda no governo FHC, durante a privatização, o
governo criou um Conselho Nacional de Política Energética. Nos dois mandatos de
FHC participavam os dez ministros, mas havia um assento para um representante
da academia e um da chamada sociedade civil. Eles sentavam, discutiam as
diretrizes energéticas de uma forma aparentemente saudável, mas, no frigir dos
ovos, na prática não mudava nada. De qualquer forma, havia pelo menos esse
sentido de escutar. Isso, com Lula, acabou. O resultado do governo
"democrático popular" do Lula, nos dois mandatos, e da Dilma, agora,
é a negação de escutar outros interesses que não sejam aqueles que sempre
estiveram junto ao poder. A própria Dilma, no início do governo Lula, tinha uma
dificuldade muito grande de ouvir, de sentar-se com os movimentos sociais e
ouvir. Eu tive a oportunidade de vivenciar o primeiro mandato do Lula, lá, em
Brasília.
- E qual era o seu papel?
Bermann – Era apagar fogo, este era
o meu papel...
- Mas, oficialmente...
Bermann - O meu papel era tentar
amenizar um pouco os conflitos, mas, oficialmente, eu fui trabalhar com a Dilma
como assessor ambiental no Ministério de Minas e Energia. A idéia inicial era
criar uma Secretaria de Meio Ambiente dentro do ministério. Era a época em que
tínhamos a Marina (Silva) falando em transversalidade, então havia um ambiente
extremamente propício para aparar arestas e ver se a coisa poderia caminhar de
uma forma mais adequada. Achei, então, que a melhor forma de fazer isso não era
criar um lugar dos ambientalistas no ministério, mas colocar em todas as
secretarias do ministério gente que pensasse o meio ambiente. Mas acabei
ficando um ano lá em Brasília. Mesmo assim, foi extremamente interessante,
porque me permitiu sair da academia e ter, na prática, a percepção de como as
coisas se dão no dia a dia dentro do governo.
- E como as coisas se dão no dia a dia dentro
do governo?
Bermann – É um horror. É uma
lentidão. É um imobilismo. É incrível a capacidade da máquina de governo de
fazer de conta que faz sem estar fazendo absolutamente nada. Eu falo isso com
todos os pontos nos “is”. No início do governo se buscava um entendimento entre
os chamados "ministérios fins" e o meio ambiente. Transportes, por
causa da construção de estradas e portos, e Minas e Energia, por causa da
atividade mineral, metalúrgica e energética, e as questões ambientais que são
intrínsecas a essas atividades. Houve uma boa intenção de levar adiante a
possibilidade do estabelecimento de pontos comuns. Fizemos, então, um acordo
entre Ministério de Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente em função da
definição de "pontos comuns", de procurar verificar onde poderíamos
estabelecer alguns consensos. Era um documento em que se definia uma agenda
energética e ambiental comuns aos dois ministérios. Se bem me lembro, o
documento foi concluído em setembro de 2003. Mas as duas ministras só foram
assinar em 31 de março de 2004.
- Por quê?
Bermann – Boa pergunta. Por quê? Boas
intenções... mas por quê? Eu realmente não consigo definir exatamente se era
uma questão de veleidade... não sei. No final de 2003 a Marina começou a
perceber a dificuldade de ela continuar, e o Lula, daquele jeito dele, deixando
a coisa acontecer. Naquele momento, o governo poderia ter tido uma agenda
comum, um processo extremamente positivo de entender que existem usinas
hidrelétricas que não devem ser construídas.
Em 2003, a Dilma estava feliz porque tinha conseguido afastar a turma do Sarney do setor elétrico".Célio Bermann
- Imagino que não era fácil ser assessor
ambiental da Dilma Rousseff...
Bermann - É, foi uma coisa meio... difícil. Como falei, eu tinha uma relação particular com os movimentos sociais e estava mais numa situação de bombeiro. Vou te contar uma coisa, como referência. Eu encontrei a Dilma na posse do (físico) Luiz Pinguelli Rosa, no Rio de Janeiro, como presidente da Eletrobrás. Ela estava extremamente satisfeita, alegre, contente, porque tinha conseguido, politicamente, afastar a turma do (José) Sarney da seara energética. (Luiz Pinguelli Rosa deixaria o cargo em 2004, a pedido de Lula, que precisava colocar alguém ligado ao PMDB e a José Sarney.) Para você ver. Na época, o (José Antonio) Muniz (Lopes) era diretor da Eletronorte... e depois tornou-se presidente da Eletrobrás (de 2008 a 2011).
Bermann - É, foi uma coisa meio... difícil. Como falei, eu tinha uma relação particular com os movimentos sociais e estava mais numa situação de bombeiro. Vou te contar uma coisa, como referência. Eu encontrei a Dilma na posse do (físico) Luiz Pinguelli Rosa, no Rio de Janeiro, como presidente da Eletrobrás. Ela estava extremamente satisfeita, alegre, contente, porque tinha conseguido, politicamente, afastar a turma do (José) Sarney da seara energética. (Luiz Pinguelli Rosa deixaria o cargo em 2004, a pedido de Lula, que precisava colocar alguém ligado ao PMDB e a José Sarney.) Para você ver. Na época, o (José Antonio) Muniz (Lopes) era diretor da Eletronorte... e depois tornou-se presidente da Eletrobrás (de 2008 a 2011).
- O José Antonio Muniz Lopes, um homem da cota
do Sarney, é um personagem longevo nessa história de Belo Monte... Só para
situar os leitores, em 1989, no último ano do governo Sarney, ele era diretor
da Eletronorte e foi no rosto dele que a índia caiapó Tuíra encostou seu facão
por causa da proposta de Belo Monte (então chamada de Kararaô), naquela foto
histórica que correu mundo. O tal do Muniz já estava lá... Depois de deixar a
presidência da Eletrobrás, no início deste ano, continuou lá, agora como
diretor de Transmissão da Eletrobrás...
Bermann – Pois então. Naquela época,
em 2003, era ele o diretor da Eletronorte que a Dilma tinha ficado feliz por
ter conseguido afastar. Por isso que eu falo que não é o governo Lula, é o
governo Lula/Sarney. E agora Dilma/Sarney. Constituiu-se um amálgama entre os
interesses históricos do superfaturamento de obras, sempre falado, nunca
evidenciado. Não se trata de construir uma usina para produzir energia elétrica.
Uma vez construída, alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é
para isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é a
utilização do dinheiro público e especialmente o espaço de cinco, seis anos em
que o empreendimento será construído. É neste momento que se fatura. É na
construção o momento onde corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores,
governadores são comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro
ao expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como Belo
Monte.
- No momento em que o senhor encontrou a Dilma,
logo na constituição da equipe do primeiro mandato de Lula, o senhor conta que
ela estava feliz porque tinha conseguido tirar a turma do Sarney do comando da
área energética. O que aconteceu a partir daí?
Bermann - A pergunta é: tirou mesmo?
- E qual é a resposta?
Bermann - Naquele momento, manter
esse pessoal à distância era estratégico para reconstruir as relações e
viabilizar algumas das diretrizes que tinham sido objeto da proposta de
governo. O que aconteceu é que a vida dessa situação (de afastamento) foi
extremamente curta devido às relações de poder. Eles não gostaram de se sentir
afastados. E eu suponho que a percepção do problema da governabilidade no
governo Lula foi uma ação desses setores que tinham percebido que estavam longe
da teta da vaca e que não podiam continuar assim. Qual era o jeito de fazer?
PMDB era oposição. Vamos conversar... E aí se reacomodam as questões. Eu não
digo que seja um grupo de ladrões mercenários. Não é isso que está em jogo. Mas
essa capilaridade do Sarney permite manter o usufruto do poder. Eu não sou
psicólogo para entender o que o senhor Sarney pensa quando vê o Muniz voltar
para o governo, ou quando se encontra diante da incapacidade técnica do senador
Edison Lobão ao conduzir o Ministério de Minas e Energia no governo Lula e
agora no de Dilma. Não há lógica para isso. Vou dizer de novo: não é possível a
gente acreditar na capacidade gerencial de um governo que se submete a esse
tipo de articulação política, colocando uma pessoa absolutamente incapaz de
entender o que é quilowatt, quilowatt/hora. De ir a público sem saber a
diferença entre tensão em volts e energia em quilowatts/hora.
- O senhor está falando do ministro de Minas e
Energia, Edison Lobão?
Bermann- Edison Lobão.
- E Belo Monte ocupa que lugar nesse jogo?
Bermann - É a oportunidade de se
fazer dinheiro e de se reconstituir as relações de poder. Essa obra tinha sido
sepultada em 1989, por conta da mobilização da população indígena, e voltou à
tona no governo Lula, aprovada pelo Congresso (em 2005) com o discurso de que
era um novo projeto.
“O valor de Belo Monte aumentou em mais de R$ 20 bilhões em apenas cinco anos. E deverá ser maior ainda. Sem contar que 80% do financiamento é dinheiro público"Célio Bermann
- A ameaça de retomar Belo Monte esteve
presente também durante o governo Fernando Henrique Cardoso, mas só no governo
Lula saiu mesmo do papel, o que ninguém imaginava que acontecesse, devido ao
apoio massivo dos movimentos sociais da região à campanha de Lula. O senhor
acha que o fato de Belo Monte ter saído do papel tem a ver com a denúncia do
Mensalão, em 2005, e a recomposição das forças políticas para a eleição de
2006?
Bermann - Não tenho a mínima ideia.
Mas vamos falar em cifras, agora. Em 2006 o projeto foi anunciado com um custo
de R$ 4,5 bilhões. Você sabe, as cifras avançaram violentamente. Antes de ir
para o leilão, a usina foi avaliada em R$ 19 bilhões. Foi feito o leilão e se
definiu um custo fictício de geração de energia elétrica de R$ 78 o
megawatt/hora.
- Por que fictício?
Bermann - Fictício porque esse custo
não remunera o capital investido. É por isso que várias empresas caíram fora do
empreendimento, sob o ponto de vista da geração da energia elétrica. Mas as
grandes empreiteiras estão presentes, porque não é na venda da energia
elétrica, mas sim na obra que se dá uma parte significativa da apropriação da
renda. Com o consórcio constituído com 50% entre Eletrobrás e Eletronorte, as
empreiteiras voltaram para fazer a obra. A elas interessa a obra – e não ficar
vendendo energia elétrica. Essa situação é entendida pelos dirigentes, pelo
governo, como normal. Para o governo federal, é uma parceria público-privada
que está dando certo. Em que termos? A obra hoje está oficialmente orçada em R$
26 bilhões. Imagine, de R$ 4,5 bilhões para R$ 26 bilhões...
- Em cinco anos, o valor da obra avançou em
mais de R$ 20 bilhões?
Bermann – Oficialmente está hoje
orçada em R$ 26 bilhões. Mas existem estimativas de que não vai sair por menos
de R$ 32 bilhões. Isso sem falar em superfaturamento.
- Deste valor, quanto sairá do BNDES, ou seja,
do nosso bolso?
Bermann – Oitenta por cento da grana
para isso é dinheiro público. O que estamos testemunhando é um esquema de
engenharia financeira para satisfazer um jogo de interesses que envolve
empreiteiras que vão ganhar muito dinheiro no curto prazo. Um esquema de
relações de poder que se estabelece nos níveis local, estadual e nacional – e
isso numa obra cujos 11.200 megawatts de potência instalada só vão funcionar
quatro meses por ano por causa do funcionamento hidrológico do Xingu. Então, é
preciso entender que a discussão sobre a volta da inflação não se dá porque
está aumentando o preço da cebola, do tomate, do leite... É por causa da
volúpia de tomar recursos públicos que será necessário fabricar dinheiro. O
ritmo inflacionário vai se dar na medida em que obras como Belo Monte forem
avançando e requerendo que se pague equipamento, que se pague operários, que se
pague uma série de coisas e também que se remunere com superfaturamento.
Com Belo Monte, ganham as empreiteiras e os vendedores de equipamentos. E ganham os políticos que permitem que essa articulação seja possível"Célio Bermann
- Quem perde a gente já sabe. Agora, quem
ganha, além das empreiteiras envolvidas na obra?
Bermann - Há as pessoas que ganham pela obra - fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato. É a escolinha ou o posto de saúde que eventualmente aquele vereador, aquele prefeito vai dizer: "É obra minha!". É isso que está em jogo. É dessa forma que a cultura política se estabelece hoje no nosso país. Isso precisa mudar. Como? É complicado.
Bermann - Há as pessoas que ganham pela obra - fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato. É a escolinha ou o posto de saúde que eventualmente aquele vereador, aquele prefeito vai dizer: "É obra minha!". É isso que está em jogo. É dessa forma que a cultura política se estabelece hoje no nosso país. Isso precisa mudar. Como? É complicado.
- O senhor costuma usar a expressão “Síndrome
do Blecaute” para se referir ao pânico da população de ficar à luz de velas
devido a um apagão energético. Acredita que essa “síndrome” é manipulada pelo
governo federal e pelos grandes interesses empresariais para emprestar um
caráter de legitimidade a megaobras como Belo Monte?
Bermann – O que eu tenho chamado de
"Síndrome do Blecaute" conduz à legitimação de empreendimentos
absolutamente inconsistentes. Belo Monte, como foi provado pelo conjunto de
cientistas que se debruçaram sobre o tema (painel dos especialistas), é uma
obra absolutamente indesejável sob o ponto de vista econômico, financeiro e
técnico. Isso sem falar nos aspectos social e ambiental. Mas se dissemina uma idéia
do caos e, hoje, há 77 projetos de usinas hidrelétricas somente na Amazônia que
utilizam a "Síndrome do Blecaute" para se viabilizarem. O fato de
hoje o aquecimento global dominar a mídia e o senso comum, assim como a própria
academia, ajuda a mostrar a hidroeletricidade como uma grande maravilha,
independentemente do lugar em que a usina vai ser construída e dos impactos que
ela vai causar. Mas o que é preciso compreender e questionar? Hoje, seis
setores industriais consomem 30% da energia elétrica produzida no país. Dois
deles são mais vinculados ao mercado doméstico, que é o cimento e a indústria
química. Mas os outros quatro têm uma parte considerável da produção para
exportação: aço, alumínio primário, ferro ligas e celulose.
- As chamadas indústrias eletro intensivas...
Bermann – Isso. Eu não estou
defendendo que devemos fechar as indústrias eletro intensivas, que demandam uma
enorme quantidade de energia elétrica a um custo ambiental altíssimo. Mas acho
absolutamente indesejável que a produção de alumínio dobre nos próximos 10
anos, que a produção de aço triplique nos próximos 10 anos, que a produção de
celulose seja multiplicada por três nos próximos 10 anos. E é isso que está
sendo previsto oficialmente.
- O que poucos parecem perceber e menos ainda
questionam, quando essas metas são comemoradas, é a forma como o Brasil está
inserido no mercado internacional em pleno século XXI. O quanto o fato de nossa
economia estar baseada na exportação de bens primários tem a ver com a
necessidade de grandes hidrelétricas?
Bermann – Desde a ditadura militar,
passando pela redemocratização, pelos sucessivos governos até FHC, tem sido
assim. Nós imaginávamos que, com Lula, essa questão ia ser reorientada. Porque
o programa de governo em que eu me envolvi preconizava a necessidade dessa
mudança. E o que aconteceu? Se você comparar os dados de 2001 com os dados de
2010, vai constatar que a economia brasileira está se primarizando cada vez
mais. Isto é: cada vez mais são produzidos no Brasil bens industriais
primários, sem agregação de valor. E são justamente os bens primários que consomem
muita energia e geram pouco emprego. Além disso, satisfazem uma demanda marcada
pelo consumismo. E o Brasil se mostrou incapaz de dizer: "Não, nós não
vamos fazer isso".
- E depois esses produtos retornam para o
Brasil, via importação, com valor agregado...
Bermann – É. Eu sempre chamo a
atenção para o fato de que, do alumínio primário que o Brasil produz, 70% é
exportado. E o alumínio consome muita energia. Para se pegar um barro vermelho,
que é a bauxita, e transformá-la em alumínio, é preciso um processo de produção
extremamente devastador sob o ponto de vista ambiental. Há um primeiro refino
para obter a alumina, que é um pó branco. Esse pó branco tem como consequência
ambiental uma borra chamada de “lama vermelha”. Um ano atrás, na Europa, na
Hungria, houve uma catástrofe em função do rompimento de uma barragem que
continha essa lama vermelha e tóxica. Ela se espalhou pelo Rio Danúbio e foi um
horror. E cada vez mais se faz isso no nosso país – e, claro, não se faz mais
isso nos países centrais. Isso não está acontecendo agora no Brasil, está
acontecendo desde os anos 70.
“Com Lula – e agora com Dilma – ocorreu a reprimarização da economia, com exportação de bens primários sem valor agregado, numa subordinação ao mercado internacional"Célio Bermann
- Houve acentuação desse processo no governo
Lula e agora no de Dilma Rousseff?
Bermann – O que acontece a partir de
Lula é o que eu tenho chamado de "reprimarização da economia". Nós já
tivemos uma época em que a economia dependia basicamente da produção de bens
primários: café, açúcar e também alguns bens industriais primários. Depois,
tivemos Getúlio Vargas, Juscelino (Kubitschek), e nos anos 50 houve a
substituição das importações com a vinda da indústria pesada. Aquele período
marca um processo acelerado de industrialização da economia brasileira em que
se buscava um desenvolvimento tecnológico para acompanhar o ritmo
internacional. Agora, vivemos a reprimarização da economia. E não é uma questão
do governo, simplesmente. O governo poderia tornar essa questão pública, dar
condições para que a população compreendesse e debatesse o que está em jogo, e
isso pudesse servir como base de apoio para uma tomada de decisão do tipo:
"Olha, Alcoa (corporação de origem americana com grande presença no Brasil,
é a principal produtora mundial de alumínio primário e alumínio
industrializado, assim como a maior mineradora de bauxita e refinadora de
alumina), vocês não vão continuar aumentando a produção aqui no Brasil.
Procurem um outro lugar. A produção de energia elétrica gera um problema
ambiental enorme, um problema social enorme, e nós vamos priorizar a demanda da
população”. Mas, infelizmente, isso não é feito.
- Mas essa obstinação do governo Lula, e agora
do governo Dilma, em fazer Belo Monte, mesmo já tendo um prejuízo de imagem
aqui e lá fora, mesmo tendo mais de uma dezena de ações judiciais contra a obra
movidas pelo Ministério Público Federal, fora as outras... Essa obstinação se
dá apenas por causa do esquema de governabilidade, do esquema político para as
eleições a curto e médio prazo, ou é por mais alguma coisa?
Bermann – Isso já não te parece
plausível? Ou você acha que tem alguma coisa meio doentia, que precisa ser
explicada? (risos)
- Doentia, não sei. Mas eu gostaria de
compreender melhor por que o senhor e a maioria dos especialistas que estudaram
o projeto afirmam que esta obra é ruim também do ponto de vista técnico.
Bermann – Divulgaram que esta será a
única usina do Xingu. Inclusive, houve um seminário recente aqui na USP em que
tive a oportunidade de discutir com o Mauricio Tolmasquim (presidente da
Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia). E ele
veio com essa ladainha: “Vai ser a única...”. E eu disse a ele: “Com o perdão
do poeta, o que você está afirmando, somente de papel passado, com firma em
cartório e assinado: Deus”.
- O senhor não acredita que será a única usina
do Xingu, então?
Bermann – Me diga alguma coisa no
nosso país que vigorou como cláusula pétrea. Me fale alguma coisa aqui no nosso
país que foi dito de uma forma e se manteve ao longo do tempo. VAI ser
necessário construir outras usinas. No atual projeto, esta é uma usina que vai
funcionar à plena carga, no máximo, quatro meses por ano, por causa do regime
hidrológico. Se ela estiver sozinha, o volume de água para rodar as turbinas
dependerá da quantidade de chuva. E aquela região tem a seguinte
característica: quando chove, quando tem água, quando desce a água dos
tributários para o Xingu é muita água, é um volume enorme de água. Mas isso só
acontece durante quatro meses por ano. Só nesse período os 11.200 megawatts vão
estar operando. Em outubro, na época da estiagem, será apenas 1.100 megawatts,
um décimo. Então, a pergunta é: por que construir uma usina desse porte, se, na
média anual, ela vai operar com 4.300 megawatts? Necessariamente vão vir as
outras quatro. Eu estou afirmando isso, infelizmente. Tecnicamente, eu tenho
absoluta certeza. Porque as usinas rio acima vão segurar a água e aí Belo Monte
não vai depender da quantidade de chuva. É o único jeito dessa potência
instalada de 11.200 megawatts existir de fato.
“O conceito do governo e das empresas não é o de população atingida, mas o de população afogada"Célio Bermann
- O senhor está dizendo que o governo federal
está mentindo ao afirmar que será apenas uma usina, para conseguir vencer as
resistências ao projeto e aprová-la, e depois fará mais três ou quatro?
Bermann – Estou dizendo que, da
forma como esta usina está colocada, é uma aberração técnica tão grande que é
totalmente ilógico construí-la.
- E essa afirmação, discutida hoje na Justiça,
de que os povos indígenas não serão atingidos?
Bermann – A noção que as empresas e o governo federal têm é a noção de população afogada – e não atingida.
Bermann – A noção que as empresas e o governo federal têm é a noção de população afogada – e não atingida.
- Agora, digamos que nós concordássemos que a obstinação
de construir Belo Monte, ainda que atropelando a população e talvez a
Constituição, se devesse à necessidade de energia elétrica. E digamos que Belo
Monte fosse de fato um projeto de engenharia viável e inteligente. As usinas
hidrelétricas são as melhores opções para a geração de energia no Brasil de
hoje? Quais são as alternativas a elas?
Bermann – Não podemos olhar a
questão da produção de energia sem questionar ou considerar o outro lado, que é
o consumo de energia. Parece meio prosaico, porque envolve hábitos culturais da
população. E a população sempre entendeu que energia elétrica se resume a você
apertar o botão e ter eletricidade disponível. E por isso fica em pânico com a
“Síndrome do Blecaute”. Mas é preciso pensar além disso. Não estou dizendo para
fechar as fábricas de alumínio, de aço e de celulose no Brasil. O que estou
dizendo é o seguinte: parem de ampliar a produção. Parem, porque diversos
países desenvolvidos já fizeram isso. O Japão fez mais do que isso. O Japão
produzia, em 1980, 1,6 milhões de toneladas de alumínio. Nós estamos produzindo
quase 1,7 milhões de toneladas hoje. Só que a energia elétrica necessária para
produzir alumínio tornou-se da ordem do absurdo. Então o governo japonês, as
empresas japonesas produtoras de alumínio e os trabalhadores da indústria do
alumínio realizaram um debate que culminou com o fechamento de todas as usinas
de produção de alumínio primário no Japão, exceto uma. Isso ainda nos anos 80.
Hoje, o Japão produz apenas 30 mil toneladas. De 1,6 milhões para 30 mil
toneladas. Diante da necessidade de gerar muita energia para produzir alumínio,
o que o Japão fez? O governo e a sociedade japonesa disseram: “Vamos priorizar
a eficiência, o maior valor agregado. Nós não precisamos produzir aqui. Tem o
Brasil, tem a Venezuela, tem a Jamaica, tem os lugares para onde a gente pode
transferir as plantas industriais e continuar a assegurar o suprimento para a
nossa necessidade industrial. A gente pega esse alumínio, agrega valor e
exporta na forma de chip. Parece uma coisa tão besta, né? Mas foi isso o que os
japoneses fizeram. Eles mantiveram o crescimento econômico e reduziram a
demanda por energia. Nós estamos caminhando no sentido inverso. Estamos
aumentando o consumo de energia a título de crescimento e desenvolvimento, e,
numa atitude absolutamente ilógica, porque a gente exporta hoje a tonelada de
alumínio a US$ 1.450, US$ 1.500 dólares. E, para se ter uma idéia, hoje falta
esquadrias de alumínio no mercado interno, no mercado de construção brasileiro.
O preço foi aumentado por indisponibilidade. Hoje, e fizemos um estudo recente
sobre isso, é preciso importar esquadrias de alumínio porque a oferta no
mercado interno é insuficiente. E, enquanto o Brasil exporta o alumínio por US$
1.450, US$ 1.500, o preço da tonelada de esquadria importada é o dobro: cerca
de US$ 3 mil a tonelada.
- Para o senhor, a questão de fundo é outra...
Bermann - Nós temos pouca capacidade
de produzir alumínio com valor agregado. Então, não estou dizendo para fechar
essas fábricas, botar os trabalhadores na rua, mas dizendo para parar de
produzir alumínio primário, que exige uma enorme quantidade de energia, e
investir no processo de melhoria da matéria-prima para satisfazer inclusive a
demanda interna hoje insatisfeita. Agora, vai perguntar isso para a ABAL
(Associação Brasileira de Alumínio). Veja se eles estão pensando dessa forma.
Billiton, Alcoa, mesmo o sempre venerado Antônio Ermírio de Moraes, com a
Companhia Brasileira de Alumínio. A perspectiva desse pessoal é a cega
subordinação ao que define hoje o mercado internacional, o mercado financeiro.
E é assim que o nosso país fica desesperado com a idéia de que vai faltar
energia.
Não é Programa Luz para Todos, mas Luz para quase Todos ou Conta de Luz para Todos"Célio Bermann
- Além de ser um modelo de desenvolvimento que
prioriza a exportação de bens primários, sem valor agregado, é também um modelo
de desenvolvimento que ignora o esgotamento de recursos. Enquanto tem, explora
e lucra. Alguns poucos ganham. O custo socioambiental, agora e no futuro, será
dividido por todos...
Bermann – Isso. Os recursos
naturais são limitados. Por isso, no meu ponto de vista, a discussão do
aquecimento global obscurece o entendimento da hidroeletricidade em particular.
Ficamos às cegas. Para transformar o barro da bauxita naquele pó branco do
alumínio, que depois é fundido através de uma corrente elétrica, é uma
quantidade de energia enorme, absurda. Essa possibilidade você não vai
conseguir com energia solar, com energia eólica. São processos produtivos que
exigem a manutenção do suprimento de energia elétrica 24 por 24 horas. A solar
não consegue fazer isso na escala necessária. Uma tonelada de alumínio consome
15 a 16 mil kilowatts/hora. Para se ter uma idéia, na média, o consumidor
brasileiro consome, por domicílio, 180 kilowatts/hora por mês, o que é baixo.
Nós ainda estamos vivendo uma situação muito próxima da miserabilidade em
termos energéticos para a população. Nós temos uma demanda a ser satisfeita com
equipamentos eletrodomésticos. Satisfeita não construindo grandes usinas
hidrelétricas para as empresas eletro intensivas, mas para conseguirmos
equilibrar a qualidade de vida, que se deve fundamentalmente a uma herança
histórica: a de sermos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo.
- Uma das piores distribuições de renda e uma
das piores distribuições de eletricidade do mundo...
Bermann – Eu chamo o programa de
universalização de "Luz para quase todos". Não é para todos, é para
quase todos. Desde que estejam próximos da rede para extensão, tudo bem. Mas,
para o sujeito distante, só agora é que se começa a pensar em sistemas de
produção descentralizada. A percepção ainda é, infelizmente, de pegar e
estender a rede. Mas o custo de extensão da rede é muito alto. Principalmente,
se você pegar e atravessar 15 quilômetros para atender duas, três casas. O
lógico seria a adoção de energia descentralizada em escala menor, que seja mais
bem controlada pela população. Mas isso não passa pela cabeça porque define
inclusive uma outra relação social. Eu também chamo esse programa de “Conta de
luz para todos”, porque de repente você fica refém de uma companhia e
necessariamente paga conta de luz, quando você poderia criar uma situação de
autonomia energética.
- O senhor poderia explicar melhor quais são as
alternativas para a população, já que todos nós crescemos dentro de uma lógica
em que recebemos a conta da luz e pagamos a conta da luz; apertamos um botão na
parede e a luz se faz. A realidade está exigindo que sejamos mais criativos e
tenhamos mais largura de raciocínio. Quais são as alternativas para o cidadão
comum, especialmente o de regiões mais afastadas?
Bermann – Depende muito do acesso à
tecnologia existente no local ou na região. Hoje, por exemplo, temos no Rio Grande
do Sul uma experiência de queimar casca de arroz para gerar energia. O calor da
queima da casca de arroz aquece a água, a água se transforma em vapor e esse
vapor é injetado num tubo e gira uma turbina produzindo energia elétrica. Não
tem nada de fantástico nisso, esse processo é conhecido há muito tempo, mas,
puxa vida, eu estou tão acostumado a simplesmente acender e apagar o botão...
Vou ficar agora me preocupando se tem combustível? Existe um lado meio trágico
da população em geral que é o comodismo: deixa que resolvam por mim. Então,
quando você me pergunta sobre alternativas, depende do que a gente está
falando. Existem alternativas promissoras deixando de produzir mais mercadorias
eletro intensivas. Como também é promissor ter esquemas de financiamento para
que o pequeno empresário adquira um painel fotovoltaico (placa que transforma
luz solar em energia elétrica) ou uma usina de geração eólica (transformação de
vento em energia elétrica). E use essa tecnologia que está disponível para
satisfazer as suas necessidades, sem necessariamente ficar ligado a uma grande
linha de transmissão, de distribuição, puxando energia não sei de onde.
- O que o senhor diria para a parcela da
população brasileira que faz afirmações como estas: "Ah, se não construir
Belo Monte não vai ter luz na minha casa", ou "Ah, esses ecochatos
que criticam Belo Monte usam Ipad e embarcam em um avião para ir até o Xingu ou
para a Europa fazer barulho". O que se diz para essas pessoas para que
possam começar a compreender que a questão é um pouco mais complexa do que
parece à primeira vista?
Bermann – Não é verdade que nós
estamos à beira de um colapso energético. Não é verdade que nós estamos na
iminência de um “apagão”. Nós temos energia suficiente. O que precisamos é
priorizar a melhoria da qualidade de vida da população aumentando a
disponibilidade de energia para a população. E isso se pode fazer com
alternativas locais, mais próximas, não centralizadas, com a alteração dos
hábitos de consumo. É importante perder essa referência que hoje nos marca de
que esse tipo de obra é extremamente necessário porque vai trazer o progresso e
o desenvolvimento do país. Isso é uma falácia. É claro que, se continuar desse
jeito, se a previsão de aumento da produção das eletro intensivas se concretizar,
vai faltar energia elétrica. Mas, cidadãos, se informem, procurem pressionar
para que se abram canais de participação e de processo decisório para definir
que país nós queremos. E há os que dizem: “Ah, mas ele está querendo viver à
luz de velas...”. Não, eu estou dizendo que a gente pode reduzir o nosso
consumo racionalizando a energia que a gente consome; a gente pode reduzir os
hábitos de consumo de energia elétrica, proporcionando que mais gente seja
atendida, sem construir uma grande, uma enorme usina que vai trazer enormes
problemas sociais, econômicos e ambientais. É importante a percepção de que,
cada vez que você liga um aparelho elétrico, a televisão, o computador, ou a
luz da sua casa, você tenha como referência o fato de que a luz que está chegando
ali é resultado de um processo penoso de expulsão de pessoas, do afastamento de
uma população da sua base material de vida. E isso é absolutamente condenável,
principalmente se forem indígenas e populações tradicionais. Mas também diz
respeito à nossa própria vida. É necessário ter uma percepção crítica do nosso
modo de vida, que não vai se modificar amanhã, mas ela precisa já estar na
cabeça das pessoas, porque não é só energia, é uma série de recursos naturais
que a gente simplesmente não considera que estão sendo exauridos e
comprometidos. É necessário que desde a escola as crianças tenham essa
discussão, incorporem essa discussão ao seu cotidiano. Eu também tenho uma
dificuldade muito grande de chegar aqui na minha sala e não ligar logo o computador
para ver emails, essas coisas. Confesso que tenho. Mas eu também percebo uma
grande satisfação quando eu consigo não fazer isso. E essa percepção da
satisfação é uma coisa cultural, pessoal, subjetiva. Mas ela precisa ser
percebida pelas pessoas. De que o nosso mundo não existe apenas para nos
beneficiarmos com essas "comodidades" que a energia elétrica em
particular nos fornece. Agora isso exige um esforço, e a gente vive num mundo
em que esse esforço de perceber a vida de outra forma não é incentivado. Por
isso é difícil. E por isso, para quem quer construir uma usina, quer se dar
bem, quer ganhar voto, quer manter a situação de privilégio, seja local ou
nacional, para essas pessoas é muito fácil o convencimento que é praticado com
relação a essas obras. Por mais que eu tenha sempre chamado a atenção para o
caráter absolutamente ilógico da usina, das questões que envolvem a lógica
econômico e financeira dessa hidrelétrica, para o absurdo que é a utilização do
dinheiro público para isso, para a referência à necessidade de se precisar, num
futuro próximo, enfrentar um ritmo violento de custo de vida, emitindo moeda
para sustentar empreendimentos como esse, é muito difícil fazer com que as
pessoas compreendam a relação dessa situação com as grandes obras. E Belo Monte
é mais um instrumento disso. Eu não sou catastrofista, não tenho a percepção
maléfica da hidroeletricidade. Não demonizo a hidroeletricidade. Eu apenas
constato que, da forma como ela é concebida, particularmente no nosso país nos
últimos anos, é uma das bases da injustiça social e da degradação ambiental. Se
não é pensando em você, você necessariamente vai precisar pensar nas gerações
futuras. Este é o recado para o leitor: é preciso repensar a relação com a
energia e o modelo de desenvolvimento, é preciso mudar o nosso perfil
industrial e também é preciso mudar a cultura das pessoas com relação aos
hábitos de consumo. Nós precisamos mudar a relação que nos leva a uma cega
exaustão de recursos.
Em Brasília há um vírus letal que se chama ‘Brasilite’. É um verme que entra pelo umbigo e faz com que a pessoa se ache o centro do universo"Célio Bermann
- O senhor acha que a Dilma tem essa obstinação
com Belo Monte, em parte, por teimosia?
Bermann - Ela é muito cabeça dura.
Bermann - Ela é muito cabeça dura.
- Às vezes eu acho que as questões subjetivas
têm um peso maior do que a gente costuma dar. Não sei...
Bermann - É, mas eu também não sei,
não tenho nenhuma proximidade maior com o que ela está pensando agora. O que eu
sei é que, no dia a dia, lá no ministério, ela demonstrava uma capacidade muito
reduzida de ouvir. Ela pode até ouvir, mas as coisas na cabeça dela já estão
postas.
- Por que o senhor saiu do governo em 2004?
Bermann - Porque venceu o contrato,
e eu achei que não valia a pena continuar. Há conhecidos meus que foram na
mesma época que eu e estão até hoje em Brasília. Não estão mais no ministério,
mas estão em Brasília. Acho que Brasília é uma cidade com um vírus letal, que é
a "Brasilite". A "Brasilite" se compõe de um verme que
entra no umbigo e toma a barriga da pessoa de forma a ela achar que é o centro
do universo. A partir daí, mudam as relações pessoais, o que a pessoa era e o
que ela passa a ser. Eu mesmo perdi muitos amigos que começaram a empinar o
queixo. Fazer o quê? E isso faz parte do “modus
vivendi” brasiliense. Basta você ter um terno e uma gravata que você é
doutor. Eu acho que a gente não vai muito longe alimentando isso.
- O senhor participou da elaboração do programa
de Lula na campanha de 2002 e participou do primeiro ano de governo. Está
desiludido?
Bermann – Eu não aceito quando me
definem como: "Ah, você também é daqueles que estão desiludidos, estão
chateados...". Tem essa conotação, né? Em absoluto. Eu não estou
desiludido, chateado, bronqueado. Eu estou indignado!
- Quando o senhor se desfiliou do PT?
Bermann – Ah, quando o bigode do
Sarney estava aparecendo muito nas fotos.
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